Por vezes sonho a Beira Alta da minha infância, vestida de verdes pinhos, tecidos em mantos espessos, correndo por montes e vales, aqui e ali rasgados em aflorações agrestes de granitos, intervalados de vinhedos, hortas e quintas, feitas das subsistências do beirão, homem duro e laborioso, crestado por frios geados e Verões ardentes, trabalhando de sol a sol e ganhando, no suor do rosto e no martírio do corpo, o pão de cada dia…

Imagens de tempos idos no tempo da vida, cruzam-se-me céleres na mente, trazendo-me à memória, a saudade dolente e bucólica, duma Beira Alta que foi evoluindo na voragem insaciável do desenvolvimento; hoje, tudo mudou, já pouco ou nada é o mesmo.

Cresci ali, na antiga quinta de S. Cosmado, numa casa de pedra, à beira do pinhal e do caminho, que pelo cemitério ou cruz da mata, me levava a Mangualde, passando na serração do Duarte Carvalho, cuja “máquina”, nos sons estridentes do apitar e do trabalhar, marcava o ritmo da vida ali, naquele lugar; este, mudou de nome, hoje é Bairro de S. João, o pinhal afogou-se em betão, a “máquina” emudeceu e a fábrica, que tanta riqueza e emprego gerou, foi-se nos ventos do progresso.

Nesta altura do ano, formigavam de vida os campos da Beira, floridos e abastados em frutos, brotando das árvores e da terra fecunda, por força da natureza e dos braços das gentes, erguidas da cama na alvorada dos dias, passados a cavar, semear, regar e colher, ceadas do caldo e das batatas, por vezes, já o luar ia alto; a vida era trabalho e o trabalho era a vida.

Dava gosto caminhar no serpentear dos carreiros, entre campos cultivados, germinando em pão e vinho, cavados palmo a palmo, roçados das silvas, perfumados de rosas bravas e madressilvas, voados e chilreados por rouxinóis e pintassilgos, aqui e acolá, arados no resfolegar de pachorrentas juntas de bois, cantados nas vozes frescas das raparigas e assobiados em melodias de resposta dos homens, atarefados na lavoura, dura e trabalhosa, feita de encanto e harmonia, unindo o homem e a natureza, em perfeita comunhão da vida.

Nesses campos, no trabalho da terra, aprendi a vida, nos intervalos dos livros, pela mão da “Ti Maria Alexandra”, a minha avó, beirã talhada no granito madrasto do destino que Deus lhe deu; para ela a Beira Alta foi o seu mundo, os campos foram a sua casa, a família a sua razão de ser, o trabalho e a honra uma outra religião; gerações sucessivas de mulheres e homens assim da Beira Alta e não só, sacrificaram as suas vidas no altar do trabalho, pelo bem comum.

Os carreiros que conheci e caminhei, apagaram-se na falta de uso, ou submergiram no alcatrão e no cimento armado, construído em casas, em que muitas renegaram da Beira o desenho e o granito; os campos, esses, muitos deles jazem estéreis, questionando-se donde virá agora o pão, que outrora tinham de produzir?

Que é dos imensos pinhais, matizados aqui e ali de carvalhos e castanheiros, embelezando com os verdes da vida a paisagem beirã, fornecendo do chão o mato para estrumar as terras e a caruma para acender a lareira, da rama o calor para aquecer o forno, onde cozia a broa e, do tronco, resina, lenha e madeira ?

As matas de pinheiros esfumaram-se no inferno anual das chamas, ateadas por mãos de má fé a soldo de novos interesses, e que devoram os pinheiros e plantam nas suas cinzas eucaliptos, sanguessugas da água e da vida da terra.

Campos pouco trabalhados, pinheirais e soitos ardidos, casas de rostos meios estranhos à Beira, granitos despidos dos seus mantos de verduras, horizontes vazios do verde das matas, rios outrora de águas fartas, ora minguadas e até secas nas raízes dos eucaliptos omnipresentes… a Beira de hoje mudou um pouco.

Vivemos novos tempos, menos rudes, menos rurais, menos agrestes e mais fartos…

O progresso, pelas mãos dedicadas e competentes dos Mangualdenses, em particular dos seus dirigentes, corre hoje por outros caminhos, felizmente, prósperos e carentes de mão de obra, garantindo aos Beirões trabalho e sustento, em novas fábricas e novos serviços, que mudaram aquela Beira Alta da minha infância, mas que continua linda e melhor de vida para todos!

José Luiz da Costa e Sousa ( na foto)
Um Mangualdense