Os Bombeiros Voluntários de Mangualde foram e são parte do meu imaginário infante e adolescente.

Nesse tempo, incêndios eram acontecimento raro em Mangualde, tão raro que, quando tocava a fogo, a garotada ali da Quinta de S. Cosmado, eu, o Manel Nunes, o Júlio Matança, os Barrosos, o Jem, corríamos mata fora, rápidos que nem láparos, a caminho de Mangualde…

…para ver sair ou passar a velha e espantosa carreta dos bombeiros, sirene uivando, imponente no tamanho e na força, estranha de forma, linda, vermelha viva de roncar tonitruante, abarrotada de mangueiras, escadas, machados e homens, soldados do fogo, uniformes refulgentes no ouro dos capacetes e outros metais, altivos, determinados, perfilados nas suas posições de combate, velozes desapareciam nos aléns das estradas, e lá iam atacar o inimigo, que bem conheciam e sempre venceram.

Nós, de olhar agitado e guloso no espectáculo, cheio de movimento e cor, para ali ficávamos pasmados na sua passagem, imaginando ser bombeiro, adivinhando para que bandas seria o fogo, pela direcção que tomavam…hoje, anos passados, sempre que ouço a sirene, em gritos esventrados e contínuos de fim de mundo e de quem me acode, cobarde, fujo, fujo de Mangualde, não consigo ver a minha terra a arder, pega-se-me o fogo ao coração e à alma e dói, dói o coração e chora-me a alma de beirão, impotente, sinto raiva, ódio, instintos de justiçar incendiários e quem os manda.

Os incêndios já chegaram em força, este ano bem mais cedo e, de novo, os Bombeiros avançaram já para esta sua guerra infindável, em defesa de todos nós.

Os Bombeiros Voluntários são os últimos, os únicos e verdadeiros heróis do Portugal de hoje, nenhuns outros.

E foram e são heróis a troco de nadas, apenas e só por elevado sentido de cidadania, e pela satisfação de servirem e defenderem o povo que somos, dos inimigos maiores que temos hoje, os incêndios e os incendiários.

Todos os anos, os Bombeiros de Mangualde, de há décadas para cá, a horas e desoras, estoica, abnegada, voluntária e corajosamente, ao tocar da sirene, largam tudo, reúnem e avançam, destemidos e determinados, para as suas frentes de combate, feitas estas de violentos e insistentes fogos, reacendidos vezes sem conta, dias seguidos, mas que vencem sempre, de quando em vez com baixas, algumas mortais; só não vencem as suas causas, coisas das justiças e justiceiros.

Ao avançarem, deixam para trás as suas vidas e as suas famílias, estas com a morte na alma e no coração, sem saberem se os seus regressam ou não vivos, depois dos incêndios.

E, muitos não regressam, caem heroicamente em combate, carbonizados nas chamas, muitas vezes postas; deixam viúvas/os, órfãos, pais e avós chorando-lhes a morte prematura e os seus futuros incertos… tudo em nome da paz na guerra aos incêndios e na defesa das vidas e haveres de todos nós, os mangualdenses.

Não tenho memória de grandes incêndios na Beira Alta, até aos anos setenta; digo-o eu, que cresci de pinhal à beira da porta, eu, que de pé descalço e calção curto, percorri a minha juventude, correndo brincadeiras na liberdade do vento, que soprava brisas através dos pinheirais, por todo esse concelho de Mangualde, ora vagueando ali para os altos do Santo

António, ou por Fagilde até ao rio Dão e, pela Senhora do Castelo a terras de Almeidinha, Canedo, Jadão, Santo Amaro, Cubos ou, ainda, por Tabosa a Fornos do Dão.

Solitário, vezes sem conta, passeei-me por todas essas matas, conheci-as pinheiro a pinheiro, em andanças vagabundas, nos momentos de afazeres vazios; não, desses tempos, não tenho memórias de pinheirais a arderem.

Os pinheirais da Beira Alta e de Mangualde foram-se já na voragem de incêndios de décadas; e afinal, o que significavam os pinheiros para os beirões e para os portuguesesb ?

Todo o Beirão, nascido e criado nesta terra e noutros tempos, cresceu mergulhado nos aromas agrestes dos pinhos, acalmou-se dos calores estivais na sua sombra amiga, aqueceu-se em lareiras feitas da sua lenha, comeu a broa de milho cozida no forno do povo, aquecido com ramas dos pinheiros, subiu-lhes troncos acima, em curiosidades de ver ninhos, desenhou-lhes brinquedos nas corrocodoas, praticou pedra ao alvo nos canecos da resina, sofreu-lhes alergias das lagartas, alimentou-se dos frutos da terra, estrumada com o mato roçado do seu chão, viveu em casas madeiradas de pinho, britou e comeu pinhões-mansos, vendidos aos cinco tostões de colares em feiras e romarias; era ainda, a venda de alguns pinheiritos, o seguro para qualquer aflição inopinada da vida das famílias beirãs.

Foram os pinheiros também História e vida de Portugal, nos enredos das lendas mouras da Beira, nas cantigas de amigo d’el Rei D. Dinis, no travar das areias em dunas, avançando país adentro e, nos corpos das caravelas da cruz de Cristo que, por mares procelosos e ignorados, levaram Portugal a mundos desconhecidos, nos tempos idos de quatrocentos e quinhentos.

Foram estes pinheiros, companheiros leais dos portugueses ao longo duma História quase milenar, e alma verde da minha Beira Alta, que tanto pão, tecto, calor e sombra deram a este povo… que se foram para sempre… e, os poucos que restam… ir-se-ão brevemente, ficará a sua memória, entre os que tiveram a felicidade de os viver, quando estes eram ainda donos e senhores das nossas matas e parte do sustento dos Beirões, Aos Bombeiros Voluntários de Mangualde e a todos os outros em geral, um simples e muito sincero obrigado, pelo combate incansável, intenso e sem tréguas aos incêndios, que todos os anos nos invadem, atacam e ocupam meses seguidos… chacinando-nos vidas, teres e haveres.

As palavras, ou recompensas materiais, não bastam para agradecer o sacrifício, o  empenhamento desinteressado, a quase devoção com que os Bombeiros, todos os anos, defendem as vidas e haveres de todos nós, contra os horrores dos fogos.

Só mesmo um sentimento de agradecimento colectivo, emanado do fundo do coração, forte, visível, concreto e honesto, pela grandeza da obra por eles realizada em benefício de todos nós, pode, minimamente, constituir um simbólico Bem Haja aos nossos Heróis, os Bombeiros Voluntários de Mangualde!

José Luís da Costa Sousa

Um Mangualdense