Há festa na aldeia!

Mal o sol nascente, ainda tímido, se assomava ali para as bandas da Nossa Senhora do Castelo, estrelejavam e morteiravam foguetes em tonitruantes “Bum, Bum, Bum…”, anunciando a alvorada na Aldeia…

Estremunhados e atordoados, acordavam os aldeões para o Dia Maior do Ano, na sua aldeia…

Era o Dia da sua festa anual!

Surpreendidos, até os Galos e as suas dedicadas galináceas, encarregados eles de acordar a aldeia nos seus estridentes có-có-rós, assarapantados pela foguetaria, estremeciam e quase caiam dos poleiros onde ainda dormitavam… e, alvoroçados estes, questionavam-se que raios, ou quem lhes roubava assim os despertares da aldeia…

Os adultos erguiam-se no imediato dos seus leitos acolchoados a colmo, palha centeia, como era de uso então e, os homens toca de se mata bicharem logo a figos secos e copinhos de aguardente para aquecer o sangue e lavar o espírito, e os putos, ah! nós saltávamos das camas, céleres que nem láparos, olhando sôfregos os azuis do céu, em busca das canas cadentes dos foguetes… e, mais céleres ainda, lá íamos cortando matos fora para as apanharmos, e mais tarde exibirmos, uns perante os outros, envaidecidos de tais feitos… traduzidos na quantidade apanhada.

As mulheres, nesse dia, esgotavam a imaginação e os parcos haveres em comes e bebes, e caprichavam logo no pequeno almoço melhorado, botando na mesa, atoalhada em quadrículas verdes, azuis ou vermelhas, em uso na época…  broa de milho, ou pão de segunda, azeitonas, chouriço, talvez presunto, quiçá uma malga de sopa da véspera, e café de mistura ou cevada; leite com café, papo secos e manteiga era coisa menos de aldeões e mais lá da vila e dos seus vilões.

E aí, antes ou depois, não havendo então casas de banho como hoje, para os mais simples havia apenas lavatórios e, os mais abastados tinham  banheiras individuais de latão… lá se banhavam e ajanotavam com as suas humildes fatiotas, seguindo-se a missa e a bênção de toda a aldeia, pelo padre da paróquia…

A festa andava no ar, sentia-se, respirava-se, ouvia-se, e o resto da manhã ia-se vivendo na expectativa do almoço, nas aldeias de então, curiosamente, dito jantar, e o jantar de hoje, nesse tempo, chamado de ceia… nesse sim, as aldeãs faziam do quase nada haver, para além das batatas e das couves, um milagre … e às mesas lá chegava o caldo, sopa era palavra dos ricos, e depois o conduto de carne, coelho, galinha, salgados da matança do porco ou outra… ah! e a sempre presente boa pinga tirada lá dos pipos da casa, e ainda uma sobremesa de leite creme, aletria, pão de ló ou biscoitos… ao ano haveria umas seis refeições destas… a família e seus convidados regozijavam então, e bem, os seus estômagos, nos sabores e na fartura do dia…

O dia da festa anual era o mais ansiado de e por todos, era o dia da aldeia e dos seus aldeões, o seu dia maior, o dia da sua modesta glória e orgulho, o dia em que se esqueciam as tristezas, desgostos, rivalidades, dificuldades e, se assumia a festa de corpo inteiro… por dentro e fora de cada um e de todos.

Era o grande Dia!

O  Dia em que o povoado se vestia de alegria,  interiormente feito dos corações ao alto das suas gentes, e exteriormente dos enfeites e luzes multicores espalhados ruas fora e, em particular, sobre o recinto dos festejos, nas ruas de acesso ao mesmo e à sua volta; era o dia em que se inundava de música a aldeia, jorrando esta, alta e sonora, da aparelhagem (sistema sonoro) e, lá para a tardinha e noite fora, do conjunto musical.

As semanas anteriores àquele dia tinham sido de trabalho intenso de todos, sob a direcção dos mordomos eleitos na festa anterior; o peditório de casa em casa para financiar o evento, o vedar a falheiras (tábuas) e mimosas do recinto da festa e, dentro deste, um segundo recinto, o do baile e as suas bilheteiras, construir o coreto para o grupo musical e mais a estante em escada para a quermesse, mais o fazer e instalar dos mil e um enfeites em papel de seda, das fiadas das lâmpadas multicores e dos altifalantes, e ainda fazer, mandar imprimir e espalhar pelo concelho o programa dos festejos, rogar o sistema sonoro e o melhor grupo musical, comprar o fogo de artifício e rogar o fogueteiro, etc… e, finalmente…

Era chegado o Dia da Festa!

Os mordomos de fitas próprias ao peito, identificadoras da sua condição, vaidosos do trabalho realizado, eram os grandes heróis das festividades, e lá andavam diligentes, imparáveis, para aqui e para ali, a coordenarem todos os detalhes para que nada falhasse…muito senhores das suas responsabilidades, pois, a honra da aldeia estava nas mãos deles, naquele dia.

A meio da tarde, às vezes logo de manhã, chegava a aparelhagem musical contratada e o seu operador, armado este de gira discos, gravador/ reprodutor de fitas, amplificador, altifalantes e colunas de som… instalava tudo, experimentava, e toca de botar música ares e aldeia “piafora”, isto é, por aí fora, ouvida até bem lá nos longes… ele eram folclores, fados, as mais populares das canções em voga, etc… todas em português… nada de estrangeiradas… éramos apenas nós, perante nós e a nossa música e na nossa língua… música que  jorrava da alma autêntica Lusitana, pura e linda, alegre, viva no ritmo e nas letras, por vezes jocosas ou até brejeiras e muito… ou, simplesmente, românticas… era aquela música que punha o povo a cantar, espontaneamente, nas vozes frescas das mulheres e dos homens… velhos e novos… pois cantava as suas vidas, os seus trabalhos, o seu ser, o seu coração, os seus sentimentos, os seus amores e desamores e até as suas lágrimas.. etc…  era o retrato musical puro e verdadeiro do povo que éramos então… e não uma imitação rafeira de estranhas rockalhadas como hoje.

E chegava a hora do leilão da quermesse, cujas prateleiras em escada, no recinto da festa, revestidas a papel decorativo, tinham sido recheadas, entretanto, com as prendas das senhoras e meninas da aldeia, como seu contributo pessoal para o financiar da festa…  ele eram bolos,  bordados, crochets, peças de louça, presuntos, etc.. cada uma, de acordo com as suas posses e imaginação, tinha dado o seu melhor, todas referenciadas com o nome da ofertante; leiloeiro a postos, homem experimentado em tais artes, e o povo,  curioso, posicionava-se em posição frente ao expositor das ofertas… iniciava-se a quermesse…

E o leiloeiro começava… “ Atenção senhores e senhores, atenção… ora temos aqui este fabuloso pão de ló, oferta da Menina Teresa, só de olhar dá vontade de comer… 10 escudos… quem dá 10 escudos… vá lá rapaziada, toca a puxar pelos cordões à bolsa, “ … “Ah! ali o Toino dá os 10 escudos, quem dá mais,  o bolo merece muito mais… “ …. e por aí fora…. até aos 15 escudos… oferecidos pelo Carlos de mão no ar, que andava de olho matreiro e namoradeiro na Teresa… e o leiloeiro, … “O Carlos dá 15 escudos, quem dá mais… quem dá?…. ninguém… um, dois, três…. arrematado pelo Carlos… passemos á seguinte, esta belíssima toalha bordada pela Dona Elisa “…   etc…

Terminada a quermesse, continuava a música, com ou sem algum baile… depois a ceia e toca de regressarem ao recinto da festa para o Arraial, o ponto mais alto dos festejos…  o baile …. Conjunto Musical a tocar quase sem parar até altas horas da madrugada… era a realização do sonho de todo um ano dos rapazes e raparigas casadoiras da aldeia e de outras em redor, impacientemente esperado… era a oportunidade única e rara, deles e delas se abraçarem nos passos e voltejos das danças… de sentirem o corpo uns dos outros, em calores e tremores calados nos bons costumes de então, oportunidade também de se falarem.. proporem namoros… de se olharem olhos duns dentro dos olhos do outro, de se respirarem e se suspirarem agarradinhos nos romantismos mais cálidos das canções, que lhes falavam aos corações… ali se acordavam muitos namoros e casamentos… sob o olhar sempre atento das mães, muito defensivas estas da sagrada virtude das filhas, essência da felicidade e solidez das famílias naquele então, até ao sim, nos altares das igrejas…

Muitos casais dançavam também alegremente mas, muitos outros homens preferiam simplesmente encostar a barriga às improvisadas barracas feitas tabernas do recinto da festa e prestarem homenagem a Baco… e ao seu bom tinto, bebido a  quartilho ou copos de três… e  ali se ficavam a decidirem e discutirem vidas… até ao fim do arraial… com mulheres e filhos próximos, se eram crescidos no baile, se eram crianças, a correrem de barraca em barraca de doces e brinquedos, em curiosidades de querem comprar tudo, quase nunca satisfeitas, mas de vez enquando… os pais lá lhes compravam uma ou outra coisa…

JAZZ BAND “OS AZURARAS” DE MANGUALDE

O melhor conjunto musical era a inesquecível banda Jazz “Os Azuraras”, de Mangualde, aí na foto, de que lembro alguns dos mais saudosos nomes como o Joaquim Mateiro de S. Cosmado, clarinete e a voz doce, ritmada e romântica da banda, o Vaqueiro no clarinete, o Alexandre do BNU e o seu acordéon, o Fausto que tocava bateria…  melhor que nenhuns outros sabiam abrilhantar e animar os arraiais… até madrugada fora… e, num sem parar, lá iam tocando o cancioneiro mais popular de Portugal… fazendo toda a aldeia dançar ou simplesmente ouvir, embevecida e esquecida nos seus acordes, dos rudes trabalhos e azáfamas dos campos e preocupações do dia a dia… era um banho para a alma e para os cansados corpos das aldeãs gentes, mergulhadas em música, vestida esta de ritmos de que gostavam e compreendiam.. marchas, tangos, passo dobles, slows, folclores… e os “Azuraras” iam fazendo desfilar entre muitas outras, “Aquela Janela virada para o mar”, “Ai se os meus olhos falassem” do Tristão da Silva, “Oh tempo volta para trás” do António Mourão, a “Oração, Chorona e o Oh meu Senhor” do António Calvário, “ A valsa da meia noite”, “Sete e Pico, nove e tal e o Carteiro” do Conjunto António Mafra, a “Milena” e outras do conjunto João Paulo, “Setembro e Ele e Ela” da Madalena Iglésias, “A Pedra caiu” do Tony de Matos, “Apita o Combóio”, “Porta Secreta e Como o tempo passa” do Artur Garcia, “Eu vou para Maracangalha”, “Encosta a tua Cabecinha”, “Lua Azul”, “O mar enrola na areia”, “Maria Rita e o Cavaleiro Solitário” do Duo Ouro Negro”, Trio Odemira, etc, etc, etc….

No recinto do baile, rapazes, raparigas e suas mães, cumpriam os rigorosos rituais dos bons costumes em uso; eles, aperaltados de lavado e a ferro bem passados, pago o ingresso no recinto do baile, entravam…

Lá dentro, as luzes multicores, o coreto, o conjunto, as músicas, ora vivas ora românticas, muitas de dançar agarradinhos… era tudo assim como que um devaneio de noite de verão, naquele então !

De um lado os rapazes … no oposto as meninas e mães guardiães, frente a frente, em observações mútuas, elas disfarçadas, eles mais declarados… a iniciativa era masculina, intervalo entre músicas, nova música e cada um avançava para a sua eleita, a menina dança, umas vezes sim outras tampas… e seguiam as danças…

Lá para a meia noite, a aldeia, pasmada e encantada, acendia-se em mil e uma cores e sons do fogo de artifício… era o quase fim em grande das festividades… era o afirmar da aldeia a si e a todas as outras em redor… do quanto era unida, reinadia e amiga de si própria, era a assinatura a foguetes, pela beleza, duração e estrondo destes da sua pequena e sóbria grandeza… em saudável competição com outros fogos de artifícios de outras aldeias, rivalidades… feitas de inocências… que seriam temas de conversas entusiasmadas por muitos dias seguintes.

O Conjunto dava por terminada a sua actuação pouco depois, arrumava o seu instrumental, a aparelhagem também, aldeões e famílias, cansados mas felizes e tristes ao mesmo tempo, pelo fim da festa, regressavam a casa… tinha sido um dia que tinha valido por todo um ano de espera e desejos de o viver… e era esta uma das simplicidades que faziam a vida e a felicidade dos povos daquele tempo, havia ainda as romarias do Concelho, igualmente lindas e fortes nas vidas de todos… e mais as festas religiosas do Natal, Páscoa e Santos populares… o resto do ano era trabalho, duro e árduo… até à festa do ano seguinte.

Gostei muito de viver tais tempos, fazem parte do meu imaginário de criança e adolescente para sempre… memórias que são pedaços de mim e que nunca esquecerei… e por nada deste mundo as trocaria… cresci com elas e nelas aprendi a gostar e a admirar o povo rude e simples das aldeias, que fui e sou também.

Bem, gostava, de poder reviver ao vivo, uma reposição de uma festa popular tal qual estas do antigamente, com as músicas da época… talvez alguma aldeia se lembre de ter tal iniciativa, um destes dias… quem sabe…

José Luís da Costa Sousa

Um Mangualdense