Mangualde, diz a Lenda que "Entre Modorno e Modorninho (ao fundo) há cem cargas de ouro fino"

O termo “lenda” designava o texto a ser lido, diariamente, à hora das refeições em comum, nos vastos refeitórios dos conventos e mosteiros, desde os primeiros tempos da era cristã, com a narrativa da vida do santo, que dava o nome a esse dia.

A “lenda” era pois, inicialmente, a biografia dos santos e bem aventurados, que foram sendo enriquecidas  com as acções, que a fé ardente dos autores dos textos atribuía aos seus heróis cristãos.

Em todos os casos, ainda que reconhecida depois como fabulosa, a lenda foi sempre na sua origem a expressão de algo, que se julgou sinceramente ser verdade.

O tempo fez das lendas narrações fantásticas e alegóricas, recorrendo ao maravilhoso, mas, por norma, passíveis de uma localização precisa em pessoas, épocas e locais determinados.

As lendas têm, pois, origens muito antigas e “…devem ser entendidas como relatos transmitidos, inicialmente por tradição oral e depois escritos, de factos ou acontecimentos, por norma, com um fundo de verdade, pelo que são objecto de alguma crença pelas comunidades a que respeitam; como tal, de certo modo, são também história de um povo, vestida de fantasia, e narrada  boca a boca, através do tempo, pelo próprio povo…”

 

Muitas das lendas em Portugal giram em torno de moiras encantadas, mouros, mourinhos, duendes, etc…; no centro do País as lendas envolvendo mouras encantadas são associadas a elementos e fenómenos naturais, tais como rochas, pedras e monumentos funerários semelhantes a antas e dólmens, achados arqueológicos pré-históricos muito prolíferos por aqui, sendo muito provável que, sem o saberem, as populações nas suas lendas que falam de mouros, na realidade se estejam a referir a povos anteriores aos muçulmanos, considerando o povo, por mal saber, que todos eles seriam mouros.

Por essa razão, todas ou quase todas as lendas do Concelho de  Mangualde, na sua maior parte, reportam-se às mouras e aos mouros, mas podem de facto vir de outros tempos e doutros povos, que por aqui fizeram História.   

A invasão da Península pelos Mouros,  sarracenos do norte de África, foi a última invasão de longa duração da Península Ibérica, depois das invasões dos Romanos e dos Bárbaros, os Vândalos, Suevos e Alanos e de muitas outras anteriores, traduziu-se numa presença da moirama na Ibéria, Kalifado Andaluz e não só, por quase cinco séculos (711 a 1192) e, foi em nome desta última, que a tradição popular guardou as suas mais impressivas memórias e ideias, tecidas pelo tempo e pelo prisma dos sonhos e fantasias, em extraordinárias lendas e superstições que, embora falando de mouras, poderão ser bem anteriores, como já dito.

As lendas dão às quimeras aparências de verdades, e às ilusões aparências de realidades, que resultam a mais das vezes de simples exaltações dos sentidos do povo, embora possam ter, como já mencionado, um fundamento de verdade inicial.

Criança ainda, a minha avó, vezes sem conta, falava-me das moiras encantadas e escondidas lá entre as rochas da Nossa Senhora do Castelo que, em noites de luar,  envoltas em longuíssimas túnicas de alvíssima seda, penteavam com pentes de marfim os seus loiros cabelos, vagueavam pelas serranias,  cantavam magoadas melodias e, por vezes, teciam em teares de oiro e marfim.

Contava ainda a minha avó, ter havido gente que as tinha visto nos então montes do Modorno e Modorninho, a exporem e admirarem ao Sol amontoados tesouros de oiro e jóias várias, que uma delas guardaria avaramente, e que a imaginação popular assim perpetuou:-

Entre Modorno e Modorninho,

Há cem cargas de ouro fino,

Só as podem encontrar,

Pé de ovelha,

Pata de relha,

Ou Maria em guedelha.

Lembro-me que esta lenda muito me impressionava a pontos de me imaginar muitas vezes a calcorrear Modornos e Modorninhos, de pedra em pedra, em busca das tais cem cargas de ouro fino.

Uma outra lenda do concelho, com moiras encantadas, fala-nos dum poço que existia de facto entre a Corvaceira e as Chãs de Tavares, cujas águas tinham uma coloração amarelo escura, devido à sua composição química, mas que a imaginação popular atribuía a ouros escondidos lá bem no fundo, e que uma Moura encantada, com corpo de sereia, guardava.

Ninguém ousava tocar nas águas do poço, mas um dia, um homem teve a coragem de o fazer e começou a despejá-lo; apareceu de imediato a moura sereia e guardiã que,  com a sua cauda deu fortíssimo golpe no homem, projectando-o contra uma pedra existente junto do poço, onde deixou uma marca bem visível, que permaneceu no tempo; com esta lenda o povo justificava, inocentemente, a marca na pedra.

Não deixa de ser curiosa uma outra lenda, localizada na povoação de Contenças, e que nos fala duma dessas moiras encantadas que transportava à cabeça uma enorme pedra de granito enquanto fiava, tendo-a deixada ao fundo, nos limites da povoação e ali permaneceu e talvez ainda esteja por lá; era uma explicação popular e fantasiosa,  para a presença ali daquela pedra.

O Concelho de Mangualde, tal como todos por esse Portugal fora, tem incontáveis  ermidas que são obra da imensa Fé do povo português, e do seu genuíno e profundo  culto à Virgem Maria e, em torno de muitas dessas ermidas, há as mais curiosas lendas, vejamos algumas.

À entrada da povoação de São Tiago de Cervães há uma pequenas Ermida, erigida à Senhora de Cervães. Porquê o nome de Cervães?

Diz o Frei Agostinho de Santa Maria que, um dia, um homem foi ali atacado por muitos veados, e quase a morrer invocou a Virgem e os veados desapareceram, tendo ele sobrevivido, milagre que originou o nome da ermida de Nossa Senhora de Cervães.

Cervães terá como seu étimo, origem do nome, a fêmea do veado, a Cerva, o que se pode colocar em dúvida, mas as lendas e superstições não têm a ver com realidades ou racionalidades, mas muito, apenas e só, com a imaginação.

Uma outra ermida junto de Abrunhosa a Velha, invocada à Nossa Senhora dos Verdes, tem também a sua lenda, que diz  ter aparecido a sua imagem, junto duma fonte no lugar onde hoje se encontra a capela, no entanto, foi levada para a Igreja Matriz da Abrunhosa, para ali ser celebrada e venerada mas, por encanto, ela voltou para o lugar da sua aparição, tendo o povo concluído que era onde ela que queria ficar, e ali lhe erigiram a Capela.

Apesar de ser Verão quando estas aparições ocorreram, os campos estavam cobertos de neves, e a Nossa Senhora dos Verdes, passou a ser invocada com o novo de Nossa Senhora das Neves; mais tarde, no século XVII, houve uma praga de gafanhotos que devastaram as culturas todas, o povo recorreu à Santa com preces e dádivas, os gafanhotos desapareceram, e de novo passou a ser invocada com o nome de Nossa Senhora dos Verdes.

Há ainda a lenda, triste e doída, do abandono da residência da paróquia de Várzea de Tavares, pelo seu pároco, tendo este ido para Vila Cova de Tavares.

Conta a lenda que certa noite dois irmãos, acompanhados por uma irmã, vieram à residência referida, exigindo que o Padre confessasse aquela sua irmã, por ter sido violada, para depois lavarem a sua afronta, matando-a e enterrando-a no adro da Igreja; o Padre recusou-se, os irmãos ameaçaram-no, então confessou-a e os irmãos mataram-na de facto e enterraram-no no adro, como disseram.

Mas foram tantos os choros e gemidos noites fora em torno da Igreja e Presbitério, e tal o pavor que do pároco se apoderou, que este abandonou a sua residência e foi para a povoação mais próxima, Vila Cova de Tavares.

SUPERSTIÇÕES OU CRENDICES POPULARES

As superstições e ou crendices da Beira, tal como por esse Portugal fora, são tantas e tão variadas, que é impossível falar de todas elas.  

Se as lendas são quadros populares muito imaginativos e cândidos, histórias dum fantástico maravilhoso, religioso, amoroso ou outro, de que por norma gostamos e vindas lá de passados antanhos, as superstições/crendices populares, por sua vez, assentam no fenómeno psíquico do medo e temor, são carregadas pela ancestral herança de todos os povos através da História, vindas da velha Roma ou de tenebrosas cabalas da Idade Média, e são mórbidas visões de seres errando pelas encruzilhadas de sombrios caminhos, em casas abandonadas, cemitérios e outros lúgubres mistérios, dotados de maléficos poderes e ou entidades paranormais, que nos ultrapassam os fracos entendimentos terrenos.

Cresci ouvindo falar de muitas superstições ou crendices beirãs, em que o povo acreditava; e era sempre a minha avó, incansável contadora de histórias e professora formada de vida e na vida, que fazia desfilar, perante a minha inquieta e atemorizada imaginação, noites inteiras contadas a histórias de Bruxas, Maus Olhados, Lobisomens, almas e espíritos do outro mundo, causas de malefícios e de quebrantos a quem deles se aproximava ou nos seus caminhos se lhes atravessava, e para cujo afastamento tinham de ser feitas rezas, mezinhas e complicados rituais, com os mais variados sortilégios.

O “mau olhado”, “mal de inveja” ou “quebranto” era indiscutivelmente a superstição mais temida pelos aldeões e não só, era reportado sempre a uma mulher, por norma de meia ou terceira idade, que tinha o alegado poder de, pela energia negativa do seu olhar, fazer males diversos, a quem a “Bruxa” entendesse.

Quantas vezes essa minha avó paterna, à aproximação dessas senhoras de quem o povo dizia “deitarem mau olhado”, mandava de imediato recolher a currais a porca prenha, ou os leitõezitos já nascidos, riqueza maior dos aldeões para realização de dinheiros líquidos, não fosse a “bruxa” deitar-lhes mal olhado, e acontecer alguma desgraça; acreditando ou não, mais valia prevenir que remediar.

A respeito de “maus olhados”, contava ainda esta minha incansável avó, que um avoengo do meu pai, ali de S. Cosmado, um dia foi à caça, voltou de mãos vazias, já na aldeia, perguntaram-lhe “Então não trazes nada?”, respondeu que não, e disseram-lhe que:-  “Ali a bruxa quando passaste deitou-te mau olhado para nada caçares..”, estando a dita senhora à janela, apontou-lhe a espingarda e deu-lhe um tiro… foi a única caça desse dia, depois andou fugido, mas eram tempos de pouca lei e pouca ordem… verdade, mentira, quem sabe, facto é que a história era contada vezes sem conta.

Outra superstição ou crendice, muito arreigada no imaginários dos terrores populares eram os lobisomens, homens lobos, que às meias noites de sexta feira, numa encruzilhada onde outro animal se espojara antes, se transformavam em seres híbridos, meios homens acima do pescoço e meios lobos ou cavalos do pescoço para baixo, e até ao nascer do sol, andavam pelas negruras das noites à caça de sangue, fugindo das luzes, e regressando à normalidade com o raiar da aurora.

As lendas, superstições, crendices e outras narrativas do fantástico, que povoavam e ainda povoavam o imaginário popular, séculos e séculos História fora, em tempos de obscurantismos culturais e informacionais populares, acabavam por ser apenas e só histórias de contar, encantar, espantar e amedrontar, ou de explicar o inexplicável, ditas à lareira nas longas noites de Inverno, passadas de boca em boca, com alguma inocência, mais crença e menos crença, mas eram apenas histórias, neutras, inócuas, sem mal fazerem a ninguém, histórias da nossa História também e, como tal, as devemos acarinhar e respeitar.

José Luiz Costa Sousa

Um Mangualdense