A romaria da N. S. do Castelo, em Mangualde, era e é a mais ansiada e popular de todas, muitas léguas em redor… e foi encanto meu, do menino e moço que fui … por aqui nascido e crescido.
Lá do cimo da serra da Nossa Senhora do Castelo, a sua Ermida, em traça de rara beleza, é o ex-líbris e Anjo da Guarda dum Mangualde que, devoto, se estende mansamente a seus pés… como que em acção de graças, pelas boas sortes das suas gentes laboriosas, hospitaleiras e empreendedoras.
7 e 8 de Setembro são os dias que festejam a N. S. do Castelo, em religiosidades e profanidades singelas, mas que faziam e fazem ainda as alegrias de todos nós, os daqui, mas também dali e dalém, num sem número de visitantes.
À meia noite de 7 para 8, lá no alto da ermida, encimada de imensa cruz iluminada… o céu acendia-se e explodia em artifícios de fogos, feitos espectáculo inolvidável de miríades de luzes, cores e sons, intensos, maravilhosos e sem igual por terras de Azurara.
A 8 de Setembro, dos meus tempos infantes e adolescentes, recordo logo no madrugar da aurora, os alvoroços da aldeia mobilizada nos preparativos da ida à Senhora do Castelo….
O fazer das merendas familiares… o arrear dos melhores vestires de lavado, o botar dos cestos de vime à cabeça e abarrotados de comeres, nesse dia, mimados… e o vamos lá, caminhos e atalhos fora… em alegres e romeiros convívios … rostos abertos em gargalhares e sorrisos feitos estes de contentamentos contentes… na perspectiva da festa.
Mangualde, hoje, sobe directo à sua Ermida passeando-se pela sua mais ampla e moderna avenida, até ao sopé da clássica e monumental escadaria de granitos e capelinhas… que, depois, nos leva mesmo ao interior da igreja e nos coloca face a face com a imagem da Santa que dali, padroeira, vê, cuida e abençoa toda a sua cidade e os seus zurões ou mangualdenses.
A festa começava logo no subir da escadaria, de lanço em lanço, capelinha a capelinha, os mais novos corriam irrequietudes no contar dos largos degraus, um a um… os mais velhos, da vida mais sisudos, rezavam nesta ou naquela capelinha e, finalmente, altaneira e esplendorosa, eis a Ermida, ali mesmo na nossa frente, em toda a sua simples monumentalidade!
Ficava-me ali impactado pela imponência da torre sineira… da qual me contava o meu pai, que um dia um homem a tinha subido por fora e eu pasmava!
Curiosos, putos que éramos, subíamos pelas escadas interiores a ir ver os sinos… e gozar os horizontes de verdes sem fim e quase vazios de tão longes que, dali são os longes!
E, lá de cima, abraçávamos o nosso Mangualde e todos os seus aléns… em mirares de espantos e de olha! lá em baixo a minha casa!
Depois o ir à igreja em rituais cumpridos de rezas, ajoelhares, sinais de cruzes e sobretudo… no adorar da beleza serena, do rosto límpido da Santa… o azul do seu manto ofuscava-me… sempre… de tão celeste que é.
Seguia-se a procissão em voltas à ermida, bem oradas e devotadas e, era o fim do sagrado da festa, seguiam-se as profanidades da mesma … em comeres, beberes, músicas e cantares… e os namorares em fartos dançares.
Mas, primeiro, íamos em procura dum lugar serra fora, para sentar e estender a merenda e a família… era um gincanar alegre entre outros merendeiros já por ali instalados a trouxe mouxe… uns conhecidos, outros não e…
… finalmente, a laje desejada… ali estava…. a mãe estendia-lhe logo a toalha em cima… e, sobre o seu xadrez de brancos e azuis ou verdes, distribuía em vaidades humildes uns comes melhorados, feitos de algumas doçuras, frituras e umas parcas carnes festivas.
O merendar na Senhora do Castelo era sempre um acto de quase magia, pelo local, o piquenique e o ambiente carregado de felicidades frugais e inocentes, de folclores vivos da alma lusa e de gentes com ares de hinos á alegria… inesquecível!
Por ali se encontravam pessoas que há muito se não viam e que desfiavam as suas vidas uns aos outros em prazerosas conversas, molhadas a tintos entre os homens … e substanciadas a mexericos entre as mulheres.
Comidos, lá íamos em juvenis entusiasmos ver as tendas em vendas de tintos a quartilho e copos de três, outras de doces, os tradicionais beijinhos, cavacas, corações e outras ainda de brinquedos, melões e melancias…olhávamos, mas era tudo, ficavam por lá os olhares e os desejos em bolsos de nadas vazios… de tão falidos.
Que importava, era tudo tão simples e lindo, tão puro, tão diferente!
No ar havia melodias, folclores, força, energia, corações ao alto… num esquecer das rudezas monótonas e aldeãs, que eram as vidas de quase todos então, anos fora.
O ir ao poço dos mouros, ali mesmo, era um ritual sempre vertido em admirações temerosas, no caracolear do sem fim da escada em granito, descendo degrau a degrau terra adentro até às águas lá fundas …. onde tudo era escuridão, paredes húmidas, limos e pompílios, cheiros de mistérios e coisas moirãs.
Depois a festa tornava-se bailação noite fora… e o povo, velho e novo, virava, marchava, tangava, passo-doblava e valsava até de madrugada…
A rapaziada essa, aperaltada de lavado e ferro passado, pago o ingresso no recinto do baile, entrava… as luzes multicores, o coreto, o conjunto, as músicas, ora vivas ora românticas, todas de dançar agarradinhos… era assim como um devaneio de noite de Verão, naquele então!
De um lado rapazes … no oposto as meninas e mães guardiães, frente a frente, em observações mútuas, elas disfarçadas, eles mais declarados… a iniciativa era masculina, intervalo entre músicas, nova música e cada um avançava para a sua eleita, a menina dança, umas vezes sim outras tampas… e sigam as danças…
Os bailes eram então sonhos do ano inteiro… só ali, festas e romarias, os costumes de então deixavam rapazes e raparigas falarem-se, agarrarem-se, sentirem-se, olharem-se …nas danças e contradanças, salvaguardadas as distâncias … e depois, no regresso a casa, as indiscrições das aventuras dos empernares mais ou menos e outros ou não amares ou azares…
Lá para bem depois da meia noite, esgotada a festa e o relógio, as pessoas lá iam regressando caminhos fora e apeados a casa…
Findavam-se assim as festas da Nossa Senhora do Castelo; era um dia esperado o ano inteiro, vivido em cheio, que ficaria a alimentar memórias e histórias… e a imaginação popular, da melhor das romarias da minha terra, Mangualde.
Obrigado Mangualde por seres também festas da Nossa Senhora do Castelo, memórias sem preço, de tempos que não esqueço.
Um Mangualdense
José Luís da Costa Sousa