“Velhote” que sou, vivo de memórias do passado, em particular, do mundo rural onde cresci e me fiz homem, na antiga Quinta de S. Cosmado, hoje B. de S. João, aqui em Mangualde, até a vida profissional me ter levado por esse mundo fora, numa aventura de quase meio século, extraordinária e linda, de que muito me orgulho.
Mas, nunca me esqueci deste meu mundo, estive sempre lá e cá, e hoje, gosto muito de recordar a velha Quinta de S. Cosmado, em particular, as suas vidas e figuras mais carismáticas, as que mais admirei, enquanto criança e jovem, aldeão e rural que fui, e, uma vez aldeão, aldeão para sempre.
O mundo das ruralidades dos anos cinquenta e sessenta, aqui pelo Concelho de Azurara da Beira, era um mundo que já só existe na vetusta memória dos “velhotes” como eu; tudo se foi na voragem do tempo e das modernidades actuais, cujos futuros são cada vez mais incógnitos, imprevisíveis e poderão, simplesmente, não acontecerem, as guerras espreitam-nos pelas mãos da pandemia da loucura humana, que anda por aí à solta, feita guerras várias.
A Quinta de S. Cosmado era então um pequeno povoado, de cerca de quarenta famílias, com um “Chefe da aldeia” ou “Cabo de ordens”, como então se designava, figura responsável perante o município pela supervisão de algumas portarias e preocupado, sobretudo, com a paz e segurança pública da aldeia.
O nosso “Cabo de Ordens” era o Snr Arturzinho, marido da senhora Libânia, uma figura notável, estatura meã, transpirava uma autoridade que lhe era coisa de nascença, fortemente personalizado, tinha uma casa e uma quinta lindas, com uma particularidade, tinha uma prensa no pátio atrás da casa, onde toda a aldeia ia escorrer o cachiço, depois das vindimas e da calca do vinho novo, serviço pago em espécie, para depois, com o cachiço já seco, podermos ir fazer a aguardente no alambique, que ficava ao lado da Quinta Alpoim, a caminho da estação.
Era o Snr Arturzinho um caçador nato, de quem se dizia gostar de contar caçadas e tamanhos de peças abatidas, em histórias de fazer estarrecer e morrer de inveja todos os que a essas artes também se davam mas, mais coelho e menos perdiz, o facto é que, melhor que ninguém, o nosso “Cabo de Ordens” regulava, com saber, argúcia e facilidade, os mandos e desmandos do povoado que, por vezes, mais vezes que as devidas, chegavam a violentas vias de facto, logo resolutamente e ali apaziguadas, pela pronta e oportuna intervenção do Snr Arturzinho, reforçado, sempre que solicitada, pela vinda e chegada da cavalaria, a GNR em pessoa, sempre a dois, um outro e o senhor Barroso lá da Quinta, pai de alguns dos meus melhores amigos de sempre, o Toninho, o Carlos e o Fernando do Barroso.
O Snr Barroso era um agente da autoridade exemplar, muito digno, sereno, aprumadíssimo, sempre bem fardado, botas com polainas altas, fosse Verão ou Inverno, espingarda Mauser ao ombro, olhar altivo e um pouco distante, passava todos os dias ali à minha porta, religiosamente, às mesmas horas… a caminho do posto, onde hoje é o centro paroquial, para ir fazer ou, já em cumprimento, dos seus turnos e patrulhas… a sua vida era a GNR, a família e o cultivar duma belga de terra, logo depois da fonte, onde cultivava as suas agrícolas subsistências, havia por lá um tanque grande para regas, de águas partilhadas entre jeiras vizinhas, onde por vezes eu e os filhos, que éramos como irmãos, tomávamos banho…
… e, bastava a sua presença, mesmo calada ou pouco falada, era homem de parcos dizeres, mal chegava lá onde as desordens aconteciam, normalmente no alto do povo, pouco depois, com ou sem umas cabeças rachadas entre contendores, a meias com as gritarias escanifradas das nervosas mulheres dos avinhados trauliteiros, mais umas idas ao posto para descongestionarem vinhos e velhos ou novos azedumes, alguns vindos de gerações antanhas, tão velhas que ninguém sabia os porquês dos ditos, e logo, entre o Snr Arturzinho, o Snr Barroso e umas cívicas reprimendas do posto aos zaragateiros… o prélio era dado por encerrado, alguns dos desordeiros adormeciam na paz das celas do posto, de pernoita grátis, e tudo regressava à paz entre os homens e mulheres da aldeia, até novas cenas do mesmo capítulo, coisa regular, quiçá salutar, lá no sítio naqueles tempos…
… e tudo isto porque, durante o dia, a boa pinga, tinto carrascão ou não, escorria a rodos do garrafão nas “jornas a molhado”, quando a roga incluía um nunca vazio e fiel amigo “palhinhas” de cinco litros, sempre à frente das mantas a cavar, ou de outro qualquer labutar e, já depois do fim dos trabalhos, algumas das então dezassete tabernas de Mangualde, que várias vezes contei, do Venâncio à Cruz da Mata… avançavam e tratavam de aquecer o sangue e os ânimos dos cansados aldeões, mais dos operários do que dos cavadores de enxada, com mais uns copitos de três tirados à boca das torneiras, directos dos pipos e pipas por trás dos toscos balcões, logo ali mesmo à mão de encher os cujos … servindo os bebes sem comes ou, com os ditos feitos fritos de saborosas sardinhas, carapaus, postas de chicharro ou pataniscas de bacalhaus, etc… embrulhadas em papo secos ou pão de 2ª … bons petiscos, que só de neles falar fico com saudades… e muitas.
As actividades agrícolas eram a alma da subsistência alimentar da aldeia, onde todos, sem excepção, tinham as suas hortas, fazendas ou belgas, e lá fui crescendo entre elas na ajuda possível à família, nos intervalos das idas para a escola e depois colégio…
… era então tudo trabalho braçal, duro e exigente, que se fazia cumprindo com rotinas e tradições vindas de muitas gerações passadas, sendo os trabalhos mais pesados, rogados aos “lavradores”… que eram, por isso mesmo, as mais indispensáveis figuras daquele mundo agrícola ainda não mecanizado… e por quem eu tinha, uma admiração muito única e especial.
Os lavradores eram, pois, quem realizava as tarefas mais laboriosas e pesadas da vida rural, as que exigiam forças e capacidades físicas muito além dos humanos poderes… e faziam-no com as suas poderosas, pacíficas e resfolegantes juntas de bois, mais os seus carros e alfaias agrícolas.
Recordo com profundo respeito, amizade e saudade os três lavradores que, incansavelmente, sempre disponíveis e amigos, competentes e dignos, com elevado ânimo e até alegria, dedicaram as suas vidas ao serviço dos mais “difíceis” trabalhos agrícolas e das boas gentes aldeãs da Quinta de S. Cosmado e arredores, os Senhores António, Manuel do Pedro e Roseta.
Sempre que a minha avó dizia:- “Zé, amanhã vem aí o Snr António lavrar a Tapada… tens de ajudar”, era dia grande para mim, o Snr António era uma força da natureza, presença forte, decidida e dominadora, transbordava de energia e dinamismo, ele e a sua junta e o carro de bois eram um conjunto monolítico, parecia não existirem um sem os outros e vice versa e, pese embora ser eu apenas um garoto, o Snr António era meu amigo, quase como um pai que eu já não tinha, ensinava-me o quê e como fazer, para servir de seu ajudante e lá íamos os dois, se a tarefa era lavrar, aí eu ia à frente dos bois, aguilhão na mão e ao ombro, aguilhada aqui e outra ali, num ou outro dos bois, e a outra mão nas rédeas ou timões a conduzir a junta, para a frente a todo o correr da belga e depois para trás, e ele, braços férreos, tisnados do sol dos campos, postos nos cabos da charrua a arar a terra, mantinha firme a profundidade e direcção da lavra, e virava, como se de papel fosse, a pesada charrua a cada ida e vinda, mantendo um diálogo constante de incentivo aos seus bois, que lhe conheciam de ginjeira a tonitruante voz e de pronto lhe obedeciam aos seus “eh boi, força boi, vamos… “; mais tarde, terminada a lavra e seca a terra, havia que a gradar primeiro a dentes para desfazer os torrões e depois com as costas da grade, o Snr António punha-se em pé em cima desta, para fazer peso e melhor a alisar e deixar pronta para as sementeiras do que quer que fosse, milho, batatas, etc… e chegava-se ao fim da lavra.
Fazíamos tudo juntos, sempre que vinha a minha casa, fosse qual fosse o trabalho, lavrar, carregar mato para fazer estrume, ou levar o estrume curtido para as terras a semear, ir à mata buscar pinheiros para lenha da lareira, ou ainda no tempo das vindimas da D. Amelinha, da qual a minha avó era feitora, transportar as dornas cheias de uvas para o lagar em Mangualde… ou o transporte dos sacos de batatas depois da apanha, etc…
… numa dessas vezes, tinha eu treze anitos, andávamos os dois a pôr e levar aos ombros os sacos das batatas, já cheios pelas mulheres da apanha e a carregá-los no carro de bois a uns cem metros, lembro-me dele dizer à mina avó: – “Oh! Maria, aqui o teu neto já levanta um saco de 80kgs e põe-no ao ombro sozinho como um homem”, porra, isto nunca se esquece, promoveu-me a homem ali mesmo, orgulhoso, nos meus treze anos senti-me como tal, homem, era um elogio que me ficou até hoje, vindo de quem veio, um homem verdadeiramente grande, de solidez, saberes da vida e forças feito, era coisa a sério, que assumi como um quase facto; obrigado Snr António.
Quando íamos buscar pinheiros para a lenha, admirava-lhe a arte de carregar, quase sozinho, os troncos dos pinheiros que rolava estrado improvisado de duas tábuas ou dois troncos de pinheiro acima, para dentro do carro de bois, e também a técnica para carregar e ajustar o mato para estrume orgânico, à forquilhada precisa e determinada, no distribuir do volume e do peso, e depois o colocar dos fueiros, taipais e, finalmente, o passar da corda… grossa e quase sem fim, para atar e segurar tudo, como garantia de chegarmos ao destino sem problemas, que nunca houve…
… era perfeito no serviço que fazia… nunca me cansei de o observar e admirar, ficou-me para sempre a sua imagem, depois dos serviços feitos, a enrolar aquela memorável corda, usava os dois ante braços e ia-a passando de um para o outro cruzando-a, no fim ficava perfeita, dava-lhe um nó, pendurava-a num fueiro, eu ficava a olhar para ela… a querer saber fazer aquilo.
Mas de todos os trabalhos de lavrador a que eu assistia, aquele de que mais gostava e mais me impressionava era o transporte das dornas altas, cheias de cachos, para o lagar… era o mais complexo e exigente, pelo peso, instabilidade das mesmas e percursos a fazer de pisos irregulares… e lá andava eu a ajudar no que podia… havia duas dornas grandes, uma ficava na vinha a encher pelas mulheres da vindima e a outra ia cheia, no carro de bois, para o lagar…
… a primeira dificuldade era o mover e carregar da dorna já cheia na vinha, do chão para o carro… a dorna ficava num nível elevado, à altura exacta do chão do carro, para facilitar, mas havia que a fazer deslizar para entrar no carro, eram largas centenas de kilos de uvas… trabalho de homens, mais do que um… o Snr António tudo comandava e tudo coordenava, demorava, mas lá se fazia… depois amarrava-se bem a dorna… fueiros, cordas, etc… e o carro lá seguia…
… o percurso tinha um ponto crítico, quase impossível… mesmo à entrada da Quinta, frente à casa da Snra Gracinha, uma subida curta de declive acentuado, terra batida mas solta, sulcos da chuva profundos… e era sempre aí, que todas as energias do Snr António eram desafiadas, eram combates duros entre ele, o terreno, a sua junta de bois, a sua notória força física, anímica e os seus saberes e técnicas …
… pasmado eu olhava-o fazendo o que me mandava… pouco ou nada… o drama era que os bois puxavam, puxavam, o carro pouco subia, os bois escorregavam, resfolegavam, babavam-se e por vezes ajoelhavam, a dorna quase que adornava… e no meio deste caos controlado, o Snr António agigantava-se, de vozes berradas, firmes e duras aos seus bois, aguilhão a incentivar pouco piedosamente a junta, pedras colocadas a travar as rodas a cada centímetro ganho, bois a puxarem ora para a esquerda, ora para a direita para evitar o adornar… o Snr António ia conquistando, laboriosa e herculeamente, centímetro a centímetro aquela ladeira, como duma batalha campal se tratasse e, finalmente, chegado lá ao cimo, fora já do declive maior, outro se seguia mais longo mas menos acentuado,…
…a caminho de Mangualde até ao lagar mas, vencido aquele obstáculo, o drama é que se iria repetir a cada dorna nova que se fosse buscar… no entanto, nunca lhe ouvi nas palavras, atitudes ou expressão do rosto, desânimos, cansaços, incomodidades, desistências, não, antes pelo contrário, tinha sempre ar de ter cumprido apenas mais uma rotina, ter vencido aquele obstáculo que dava-lhe ainda mais energia e mais o desafiava para nova investida, e era sempre com renovados alentos, quase com alegria, que voltava com nova dorna e enfrentava outra vez aquela maldita subida da Senhora Gracinha, hoje asfaltada ou empedrada.
Foi a figura ícone da minha adolescência aldeã, pelo seu saber das coisas da terra e, principalmente, das artes e técnicas de comandar e lidar a sua junta de bois e de vencer os mais penosos desafios, pela sua imensa disponibilidade para todos os trabalhos para que era solicitado, pela aura de força positiva, imperativa e vencedora que dele emanava, fiquei-lhe sempre com muito respeito, e muito agradecido por tudo o que com ele aprendi sobre a vida e como a enfrentar, centímetro a centímetro, como na subida da Snra Gracinha.
O Snr António foi e será sempre, para mim, a figura mais inesquecível e marcante daquele meu mundo já ido no tempo que, apesar de toda a sua dureza, tinha e teve o seu encanto e beleza, e que foi a grande escola da minha vida, e que adorei ter vivido.
Obrigado Snr António, dum amigo que nunca o esqueceu e nunca o esquecerá.
José Luiz da Costa e Sousa
Um Mangualdense
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